Esta é uma pergunta que muitos nos fazem nos últimos tempos, alguns em tom acusatório. Já estamos sendo julgados demais, por isso não acreditamos que precisamos nos defender aqui, mas, sem dúvida, alguns posicionamentos nossos precisam ficar mais claros publicamente. E as acusações são muitas: “os anarquistas na FIP estariam à reboque dos maoístas, a FIP seria sequitária, porque a FIP se distanciaria das massas adotando uma posição vanguardista, contraditória com as posições anarquistas.” Vejamos então.
Quando os anarquistam optaram por compôr a FIP, havia um levante popular na cidade, a formação da frente foi fundamental para evitar que este movimento fosse cooptado pela política partidária e, ao mesmo tempo, para dar uma cara à esquerda ao movimento. Foi a FIP que substituiu, na época, o fórum de lutas no IFCS, e isso incomodou muitas pessoas, que passaram a contribuir direta ou indiretamente com a nossa criminalização, tentando acirrar as discordâncias teóricas internas à frente, que sempre existirão entre anarquistas e comunistas. Apesar dessas tentativas, a unidade tática pela prática se manteve, organizamos encontros e debates, a FIP-RJ cumpriu um papel fundamental nas lutas políticas da cidade, barrando o oportunismo e o aparelhamento eleitoral. E foi apenas sob forte criminalização pelo Estado que alguns acreditam terem conseguido abalar a Frente Independente Popular do Rio de Janeiro.
Mas o que ocorre hoje? Agora, depois de tudo isso, em meio a um processo que tem a FIP como organização criminosa armada, alguns ainda nos cobram: “O que vocês anarquistas ainda fazem com os maoístas? Estão ajudando eles a manter a ideia de que ainda compõem uma frente, de que ainda existem anarquistas com eles.”
Ora, não somos ingênuxs como estes que nos acusam pensam, mas também não somos como ratos que abandonam o navio quando este está afundando. A FIP foi construída por esta unidade histórica entre anarquistas e comunistas revolucionários, nós temos responsabilidade por isso quando aqueles que lutaram ao nosso lado estão em Bangu. Neste sentido, por que não estaríamos com xs maoístas, se este são os companheiros que têm demonstrado mais coerência entre o que defendem e aquilo que de fato fazem? Os maoístas são companheiros coerentes e solidários, com os quais não temos unidade teórica nem de projeto político, é fato, mas temos sem dúvida unidade prática e tática no momento atual.
A unidade entre comunistas e anarquistas não existe de hoje, não nasceu com a FIP. Mas o que temos claro para nós é que se o anarquismo não é mais forte hoje dentro da FIP, isso se deve a uma escolha tática dos próprios coletivos e organizações anarquistas que compõem ou compuzeram em algum momento a frente. O momento histórico atual é muito mais favorável ao crescimento da proposta anarquista do que comunista, e isso no mundo todo. Não temos mais o grande projeto político único do PCB, não temos mais a União Soviética, a falência deste projeto abriu espaço para a retomada e o fortalecimento de outros modos de organização, tanto mais fortes quanto menos centralizados. De fato, hoje, não temos razão para estar à reboque, estamos ao lado, e ao fundo, porque as ideias anarquistas são mais aceitas pela massa do que o comunismo estatal, isto é um fato, e se espelha nos modos de luta atuais, na sua força pela horizontalidade e organização em rede. Entretanto, nunca foi um projeto político nosso disputar aquele espaço, por isso nunca se colocou o peso que seria necessário para isso. A FIP sempre foi um espaço de unidade tática para nós e esperamos que continue assim. Não aceitamos nem concordamos com a transformação da frente em um espaço de organização, pois organização supõe unidade estratégica e projeto político. Continuaremos atuando no sentido de manter cada vez mais a FIP como uma frente ampla, com as características que uma frente precisa ter e, também, acreditamos que apenas o desvirtuamento desta característica pode levar a FIP ao desaparecimento. Não sabemos o que será a FIP daqui pra frente, mas continuar na FIP parte da compreensão que ela continue sendo uma frente, a FIP não é trabalho de base, os anarquistas que a compõem devem necessariamente ter outros espaços nos quais atuem tendo em vista a construção do poder popular.
É claro que é fundamental nos diferenciarmos. Por que o anarquismo é tão forte hoje? Vivemos uma crise no sistema de representação diretamente relacionada com a chegada da esquerda tradicional ao poder e o fim da guerra fria, é um momento histórico de fortalecimento do anarquismo: insatisfação com os meios da esquerda institucional e o burocratismo dos partidos que abre espaço para as propostas anarquistas e a ação direta nas ruas. A partir disso, as posições defendidas pelxs anarquistas, enquanto uma alternativa concreta obtiveram grande crescimento e repercussão. O anarquismo se opõe a todas as formas de opressões, das quais o Estado é um dos responsáveis pela manutenção, mas não se trata apenas do Estado, é preciso ressaltar também as demais instituições, a Igreja; o patriarcado; o partido; o patrão; a pátria; as grande corporações; a mídia; os cáreceres;… As opressões seguem uma mesma estrutura, uma mesma lógica, que, não por acaso, é a do Estado patriarcal, por isso, combater o Estado é também combater esta estrutura, pois não será possível acabar com o Estado enquanto esta estrutura se mantiver, ao contrário, é esta estrutura que mantém o Estado. Nossa luta é uma luta diária, é uma luta de construção e de empoderamento pela ação direta pela base da sociedade. Muito se tem falado em ação direta nos últimos tempos. Mas, ao contrário do que afirma a grande mídia manipuladora, ação direta não é sinônimo de ação violenta em protestos, ação direta é quando o povo por suas próprias mãos age politicamente, é participação política real nos locais de trabalho e moradia, é educação popular nas favelas, é a construção de territórios autônomos, ocupações sem-teto, é quando o povo se organiza diretamente e constrói aquilo que almeja e luta nas ruas por seus interesses.
O anarquismo promove a adoção de decisões diretas e horizontais, ao invés da delegação de autoridades, em toda a vida social de um indivíduo. Para o marxismo, embora exista toda uma série de problemas sociais que não são reduzidos à estrutura econômica capitalista, seria sempre a luta de classes que estaria por trás de todas as demais desigualdades. Sendo assim, com a revolução, as demais opressões deveriam, terminariam por, desaparecer. Neste sentido, a intervenção política por excelência é aquela que toma o poder e reapropria-se da produção por meio da tomada do Estado. Neste sentido, é o fim o que importa, a história seria teleológica e dialética, o Estado seria tomado para ser extinto finalmente em um estágio superior do desenvolvimento do comunismo. A perspectiva defendida por Bakunin, por outro lado, é a de uma dialética sem síntese, os meios seriam os fins, seria preciso construir hoje a descentralização da sociedade que queremos e não haveria nenhum garantia de que ela seria alcançada, pois a única verdadeira mudança política viria de baixo e de vários pontos, não do alto e do centro. Estes aspectos precisam estar sempre claros.
É claro que qualquer espaço onde atuam independentes e organizados existe sempre a possibilidade de que aqueles que não estão organizados fiquem à reboque dos grupos mais orgânicos que constróem e colocam peso ali. Por isso defendemos a necessidade de que todos se organizem, de que os anarquistas construam seus próprios espaços e projetos políticos. Poderíamos estar mais fortes não fossem posturas anti-organizacionais e falta de solidariedade existentes entre os próprios anarquistas. Esperamos que outras organizações anarquistas possam surgir, incentivadas pelo momento presente e aprendendo com nossos erros, organizações com interseccionalidade real e horizontalidade e, acima de tudo, com coerência entre discurso e atuação. Mas os/as maoístas não são piores que demais organizações ou partidos comunistas, pelo contrário até, teriam peso suficiente na construção da frente para aprovar pelo voto praticamente qualquer posição que quisessem e, muitas vezes, optam pela construção conjunta com demais grupos ali presentes apenas pela opção de manter a unidade e o caráter plural da frente.
Adicionalmente, acreditamos que a divergência real e que atrapalha a esquerda não é entre comunistas e anarquistas. De fato, em qualquer âmbito, em algum sentido, xs anarquistas sempre fazem alianças com alguns comunistas. A real divergência de fundo é entre reformistas e revolucionários, entre aqueles que acreditam na via institucional e aqueles que não acreditam, pois sabem que esta não apenas não ajuda, mas atrapalha. É por isso que podemos ter unidade tática com maoístas, com comunistas revolucionários, mas não podemos tê-la com o governismo. Nos parece incrível que aqueles que nos cobram coerência e criticam nossas alianças, andam de mãos dados com o governo, sem verem incoerência nisso. Os governistas nos entregaram para a polícia em várias circunstâncias e atravancam a luta com sua perspectiva burocrática e eleitoral. Antes de nos acusar deveriam refletir sobre o sentido de suas próprias alianças, se não é cooptar a luta e torná-la cada vez mais facilmente assimilável sob a marca do anarquismo.
Uma palavra ainda sobre vanguardismo. A campanha ‘não vai ter copa’ não foi uma campanha sequitária e que não dialogava com a população. Assim como também não foi a vitoriosa campanha ‘não vai ter voto’, que contou com inúmeras panfletagens na central e ganhou, de fato, as eleições no Rio de Janeiro. Algumas pessoas acreditam que as ruas esvaziaram “naturalmente”, e que a FIP continuou na rua como uma “vanguarda” da luta, o que seria contraditório com a proposta anarquista. Mas não foi bem assim. Houve uma enorme campanha estatal para tirar as pessoas das ruas, campanha que apenas obteve seu primeiro grande êxito com o acidente fatal com Santiago. Campanha manipulatória e repressiva, muitas investidas, guerras de discursos e resistências. É claro que não é fácil mudar anos de manipulação por meio do futebol em uma sociedade praticamente forjada a partir disso. Mas mesmo assim a repercussão dos atos e da campanha ‘não vai ter copa’ foram enormes, no mundo todo, pois o mundo estava voltada para cá. Alguém tem dúvidas de que a copa não teve a mobilização de massas que se espararia em um país dito ‘do futebol’?! E se as manifestações populares não foram maiores foi porque a repressão foi gigantesca. Não foram as ações de resistência nos atos que tiraram as pessoas das ruas, houve um movimento de reorganização social importante e uma intensa repressão. A FIP esteve junto, sem aparelhar, apoiando inúmeras lutas populares e evitando que elas fossem cooptadas pela via institucional, isso ocorreu na desocupação das famílias do prédio da Oi, nas remoções na Mangueira, na greve dos garis, para não mencionar a própria greve dos professores.
A quem interessa dizer que a FIP não dialoga com a população? Àqueles que querem dizer que eles é que podem falar pelo povo, àqueles que querem tornar controlável a luta dos excluídos. Àqueles que se colocam na frente precisamente para fazer o povo recuar, que aparelham a luta para fazê-la cooptável, para tirar a luta do caminho do radicalismo que não é dado por nenhuma vanguarda, pois o povo não precisa que lhes ensinem a revolta, que lhes digam quando se rebelar. De fato, o governo, o Estado, tem historicamente reprimido muito, matado muito, mentido muito, criminalizado muito, manipulado muito, para calar a revolta popular. Não, o povo não é pacato, mas sempre existem aqueles que dizem que tais ações não são do povo, que são mandadas, que emanam de líderes, isso serve à repressão, serve para fortalecer o mito do povo sempre servil, quando, de fato, as pessoas apenas se calam às custas de muita bala. Acham que os que avançam, sempre, necessariamente, não são o povo, porque acreditam deter a muda verdade de um povo do qual se distanciam como “mais conscientes”, acham que o povo ainda precisa que lhes ensine muito. Mas isso sim é vanguardismo e paternalismo, é se achar superior, e este discurso serve sim, como uma luva, à reação.